14/10/2011

JOÃO CARDOSO ROSAS



Tumultos

O povo português é geralmente conformista - ou pacífico, como diriam os adeptos do politicamente correcto. Protesta muito entre dentes, mas tira o chapéu à autoridade.

Face à crise, à perda de direitos e ao empobrecimento, a grande maioria dos portugueses acha que não há nada a fazer e procura arranjar-se como pode.

Apesar disso, agora toda a gente fala nas grandes perturbações da ordem pública que se adivinham. O primeiro a lançar a pedra foi Passos Coelho, advertindo publicamente para a repressão de tumultos que ninguém tinha visto nem tido como prováveis. Depois foram as polícias a avisar, em documento oficial, que vêm aí os piores motins de que há memória. Por fim, os comentadores passaram a escrever obsessivamente sobre o assunto, augurando o pior, ou mesmo o inimaginável. Mas por que será que isto acontece? Creio que as razões são diferentes para os diversos protagonistas.

Os comentadores sabem que essa é a melhor forma de serem escutados. Muitos deles não escrevem para ajudar os leitores a pensar, mas antes para atrair a atenção sobre si mesmos. Se disserem coisas razoáveis, ninguém lhes liga. Mas, caso se especializem na profecia da desgraça, todos falarão deles. O grande sonho de muitos dos nossos comentadores é o de se transformarem no ‘Mr. Doom' português.

Os polícias, por seu turno, estão directamente interessados no assunto. Os polícias sonham com tumultos tal como o corrector Alessio Rastani sonha com recessões. Ou seja, as ameaças graves à ordem pública são a única forma de dar maior importância à polícia. Ao enfatizar a gravidade do que se prepara, os polícias estão a garantir um bom orçamento para a administração interna, manutenção dos salários, inexistência de despedimentos, renovação do material, etc. Para além de tudo isso, garantem os devidos "sinais de honra" por parte da sociedade que, como já Hobbes notou, são quase tão motivadores como o medo da morte.

Por fim, Passos Coelho e o Governo têm toda a conveniência política em lançar o assunto para o debate público. O esquema é clássico. Aqueles que detêm o poder gostam de mostrar ao povo que só existe uma alternativa: ou eles, ou a anarquia. Não há forma melhor de reforçar a autoridade do que a ameaça de violência nas ruas. O povo voltar-se-á agradecido para os putativos fazedores da ordem. Que o diga o dr. Ângelo Correia, grande amigo e mentor de Passos Coelho, que, antes de se ter transformado milagrosamente em sábio televisivo, se notabilizara pela invenção de um dos maiores motins da nossa história: a "conspiração dos pregos".

Os tumultos virão talvez ou, possivelmente, não virão. Mas, enquanto vêm ou não vêm, já estão a dar bons proveitos a muita gente.


IN "DIÁRIO ECONÓMICO"
10/10/11
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