10/08/2011


HOJE NO
" PÚBLICO"


Os doces algarvios segundo Lavoisier
E então ela trouxe o milho, numa fiada de massarocas, compridas, com os grãos muito alinhados. Depositou-as na mesa e voltou com um prato de doces. "Estão a ver estes amarelinhos? São feitos com este milho-rei e amêndoa. Isto é tradição, a minha avó fazia-os", diz Fátima Galego, doceira, com fábrica e loja no Sítio do Tesoureiro, em São Brás de Alportel, onde produz uma tonelada diária de doçaria típica algarvia, o suficiente para começar a pensar em exportação.

China? Porquê essa obsessão pela China, não se pode começar por Espanha? Fátima elogia o vizinho ibérico, mas também ataca: "São muito nacionalistas - algo que os portugueses deveriam copiar". "Quando vou a Espanha para tentar vender, respondem que também têm bolos muito bons. E parece que ficam ofendidos."

Como fazer chegar os bolos à China em boas condições? A resposta é desarmante: "Então os pastéis de nata não chegam lá? Apareçam os clientes que arranjaremos forma de o fazer. Estou à espera que o Governo pegue nestas coisas e nos ajude a exportar, pois gasta muito dinheiro em coisas que não prestam. A minha arte é fazer bolos. Sou sozinha, faço muito, mas não consigo fazer mais".

Tesouro islâmico

Sozinha não está, pois outras sete funcionárias a acompanham. "Sou eu que faço toda a massa. É um segredo que só eu conheço. Faço-a durante a noite, para que as empregadas, de manhã, comecem a trabalhar os bolos", conta Fátima, na esplanada dos Tesouros da Serra, contando depois um pouco da história daquele sítio: "Aqui habitaram povos islâmicos, que criaram as minas para aproveitarem a muita água que por aqui corre - um tesouro - e os sistemas de condutas que ainda existem. É uma terra muito fértil, daí o tesouro e chamar-se o sítio do Tesoureiro."

Afirma-se apostada na preservação dos produtos da região, das tradições e de "tudo o que corria risco de extinção, ou de ser apagado da memória das pessoas". "A tudo isso eu tenho dado a volta, como o bolo e o licor de alfarroba, que ninguém já sabia que tinham existido. Eu recuperei essas receitas", refere. "Ela é inventiva", diz o presidente da Confraria dos Gastrónomos do Algarve, José Manuel Alves, aludindo a Fátima e ao estado desta doçaria (ver outro texto).

Invenção mesmo, e recente, é o farrobito, que passou a ser o doce oficial de Albufeira. É confeccionado pelo doceiro Júlio David, vencedor de um concurso promovido pela autarquia. É feito com laranja, alfarroba, azeite, amêndoa e mel, que substitui o açúcar.

Porém, Fátima mostra-se tradicionalista: "[Voltando ao bolinho amarelo] Só dá com este milho, o milho-rei da região, que já quase ninguém planta. Mas eu quero preservar esta tradição. Quando não se planta não se fazem bolos. Sabe, as pessoas daqui faziam e fazem o xarém, e essas papas sobravam para o dia seguinte. Uma das formas de as aproveitarem era juntar amêndoas e fazer um bolo, ou comiam-no com água-mel, ou mesmo com torresmos. Não se desperdiçava o milho, tal como se aproveita o pão duro para fazer açorda. Aqui usa-se a lei de Lavoisier, segundo a qual nada se perde, tudo se transforma, tudo se aproveita".

A qualidade paga-se

A avó de Fátima fazia os licores de alfarroba. Era a bebida fina para as visitas, diz a neta, orgulhosa: "A alfarroba produz um melaço que era utilizado na escassez do açúcar em tempos de guerra. Adoçava o café. Os italianos pegaram nisso e é o segredo do seu melhor café, pois os grãos são lavados e envolvidos naquele molho de alfarroba. É o que produz aquela espuma. A alfarroba é o segredo de muita coisa. É ouro".

Dela se extrai muito produto: da grainha o estabilizante para o gelado, que durante anos os portugueses venderam para Itália sem saberem para que efeito - os italianos embalavam-no e vendiam-no a Portugal como fermento do gelado; é proteína vegetal para a comida de bebés; a parte lenhosa serve para ração de animais e para a produção de biocombustível; e ainda tem o exterior, que é o chocolate, antialérgico, tolerado por toda a gente.

Apesar de a alfarroba ser o ouro, Fátima Galego frisa que o rei da doçaria algarvia é a amêndoa: "Toda a gente gosta, o figo é um pouco pesado, já a alfarroba é do agrado de 90 por cento das pessoas". Mas não há escassez de amêndoa, devido aos custos da apanha? E não é por isso que aqui chega a dos EUA, mais barata? "Os agricultores que me vendam toda a amêndoa que quiserem. Não me falta matéria-prima. Um dos problemas da região é não ter lojas onde os produtores possam levar os seus produtos, onde as pessoas sintam confiança para comprar."Na confecção dos doces não poderiam faltar a laranja e o limão, e a gila, que se extrai da abóbora que é partida atirando-se ao chão. "Agora já existem facas de cerâmica para que as possamos cortar sem lhe estragar o sabor, como acontece com as lâminas de aço. É preciso cuidado, pois a cerâmica corta muito", explica a doceira, vincando que tudo é feito de forma artesanal: "Levamos duas horas a mexer um tacho de ovos moles. Os fios de ovos com gema são passados por finos funis que derramam os fios em calda de açúcar a ferver. Fazemo-los às meadas, como antigamente, em tacho de cobre".

E o que falta ao Algarve para romper as suas fronteiras? "Só é preciso vontade. Temos produtos de elevada qualidade e temos inteligência, só temos de a pôr a trabalhar, porque isto não pode ser só malandriça [preguiça]."


* Uma mulher exemplar, especialmente para o sr. ministro da Economia


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