01/07/2011

FERNANDO GABRIEL


Fernando Gabriel

 

     Oligarquia demérita



Nas semanas a seguir às eleições legislativas surgiram dois argumentos curiosos na discussão política. O primeiro envolvia uma distinção entre a “maioria política” decorrente da representação eleita e a “maioria social”: a primeira supostamente não corresponderia à segunda e era por isso destituída de “autoridade moral”.

Quando foi conhecida a composição ministerial do executivo, este argumento deu lugar a outro: faltava experiência e "peso" a alguns dos ministros escolhidos -na métrica política portuguesa, o mérito profissional oscila entre a imponderabilidade e a inconveniência. Estes argumentos surgiram por oportunismo, mas têm uma genealogia comum na história das ideias; uma genealogia que importa considerar, até porque constituem o fundamento de discursos contestadores da legitimidade do executivo para promover reformas no Estado.

Ironicamente, a distinção entre a "maioria nacional" e a "maioria legal" teve origem numa tentativa de institucionalização de uma forma de meritocracia. Sieyès, hoje reduzido a ideólogo do "Terceiro Estado" mas personalidade central na política francesa entre 1789 e 1799, procurou contrariar simultaneamente as ameaças opostas dos monarquistas e do extremismo jacobino. Em oposição ao desejo monarquista de regresso a uma ordem nobiliárquica e ao desejo jacobino de regressão civilizacional através do exercício ilimitado da soberania, Sieyès e Roederer propuseram um sistema que julgavam conforme ao espírito da doutrina política de Rousseau: um sistema de participação política gradual, que obrigava todos, independentemente da condição económica e social, a entrar na actividade política no nível mais baixo, progredindo por promoção. O sistema, cuja lógica perdura nas burocracias contemporâneas, visava criar uma hierarquia "representativa" dos interesses da "maioria nacional", cujo topo seria ocupado por uma "aristocracia electiva", investindo as instituições políticas do Estado de "autoridade moral", uma ideia que seria reelaborada por Hegel.

Esta lógica republicana revelou-se desastrosa nas democracias de massas e partidos organizados: a pretensa superioridade moral do Estado protegeu agendas partidárias baseadas na dissociação de custos e benefícios das políticas públicas, gerou um crescimento descontrolado de impostos e despesas, tornou a hierarquia do Estado parasitária da sociedade civil, dominada por uma oligarquia demérita composta por profissionais treinados nos partidos para viver no e do Estado.

É por isso que a perspectiva de um governo de ministros que não foram criados no sistema aterroriza a "gente de dentro", que os acusa de falta de "legitimidade" e de "inexperiência". Para muitos deles, a alternativa de governação a partir de Bruxelas não é um mal, mas a salvação: aí reside uma vasta burocracia inimputável, imune à realidade -observe-se a satisfação do sr. Rompuy ao apresentar uma brochura que custou 100000€, anunciando a nova e sumptuosa sede do Conselho Europeu, na reunião onde se discutiam mais medidas de austeridade na Grécia; aí vigora a cumplicidade e o secretismo -veja-se a resistência do Parlamento Europeu à divulgação do relatório Galvin, contendo provas do abuso sistemático das verbas parlamentares. À medida que as oligarquias estatais forem sendo pressionadas, a UE funcionará como o "último refúgio dos patifes" e para desmontar esta tenaz de oligarquias deméritas vai ser necessária muita "inexperiência": os próximos dois anos são apenas o primeiro passo.

IN "DIÁRIO ECONÓMICO"
29/06/11

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