17/11/2010

PEDRO CAMACHO







  Pés de barro

Catroga e Teixeira dos Santos fizeram um autêntico milagre. O acordo PS/PSD tem pés de barro, mas tem pés. E é melhor que nada

Um bom acordo é sempre um bom acordo. O problema é que existem alguns acordos que, objetivamente, não o são. E este, entre PS e PSD, para a viabilização do Orçamento do Estado de 2011, não é, decididamente, um bom acordo. Dito isto, falta saber se este mau acordo é melhor que um não acordo. Por muito estranha que a conclusão me surja a mim próprio, pertenço ao grupo daqueles que acreditam que sim, que este acordo, apesar de tudo o que tem de mau e joga a seu desfavor, até em termos de sustentabilidade, é melhor do que um não acordo e tudo o que daí decorreria - inexistência de orçamento, descrédito (e fecho do crédito) internacional, intervenção do FMI, etc.

Este não é um bom acordo por variadíssimas razões. A primeira das quais reside, desde logo, no facto de não existir qualquer respeito entre as partes que lhe dê a consistência de que qualquer acordo necessita. Bem pelo contrário, as equipas negociais que se envolveram neste processo andaram sempre de forma errada, num jogo intrincado de calculismo político-partidário que foi longe de mais, incluindo troca de acusações sobre o caráter dos respetivos líderes partidários. Um mau caráter é um mau caráter, ontem, hoje e amanhã. Quando as acusações são feitas neste tom, é sempre difícil fazer marcha-atrás, diretamente ou por interposta pessoa. E só muito dificilmente um qualquer acordo com este tipo de fundação poderá correr bem, coisa que está, aliás, à vista de toda a gente, a começar pelos mal-amados "mercados", que insistem em subir as taxas de juro a que se financia o Estado, apesar de toda a severidade do Orçamento. É o que dá fechar acordos com pontas soltas que valem milhões de euros. E é, sobretudo, o que dá a falta de sentido de Estado com que tudo isto foi feito.

Este acordo tem uma mão-cheia de problemas que vão marcar, sem apelo nem agravo, os próximos tempos. Porque é uma manta de remendos e porque não se esgota no momento em que é assinado. Pressupõe mesmo muitos "amanhãs" nebulosos. Esses amanhãs cheios de suspeições começaram logo nos minutos subsequentes ao anúncio do acordo, com dúvidas sobre o modo como o Governo iria compensar os 510 milhões de euros de receitas em impostos que o PSD retirou à proposta do Orçamento - se respeitando o entendimento com os sociais-democratas, cortando no lado da despesa, se ignorando o "espírito" do acordo, trocando as receitas fiscais eliminadas por outras de efeito semelhante. Um amanhã pouco claro, que se manifestou, sem qualquer forma de pudor, nas diversas intervenções aquando da discussão parlamentar do OE, em "sede de generalidade", com Governo e PSD a trocarem recados e diferentes leituras das obrigações decorrentes do seu pacto. Uma falta de clareza e de capacidade de entendimento que estará a pairar na análise em "sede de especialidade" - é aqui que PS e PSD terão de se "entender" (um entender com muitas aspas) para encontrar soluções alternativas que compensem aqueles milhões de euros.

Um "amanhã" que, caso o acordo passe o teste da discussão na especialidade, não se esgota na votação global final do OE. Estará presente, dia após dia, ao longo de todo o ano de 2011, nas relações entre PS e PSD, entre Governo e Parlamento. Um ano cheio de armadilhas, que arranca com o atrito das eleições e promete muitos outros, porque, infelizmente, não vão faltar ocasiões para que Governo e PSD troquem argumentos e acusações a propósito de dificuldades financeiras, económicas e sociais. Não vão sequer faltar ocasiões em que o PSD caia na tentação de derrubar o Governo, ou para que o próprio Governo sinta a tentação de ser derrubado. E como pano de fundo, que teremos nós a sustentar este barril de pólvora? Este mau acordo que ninguém livremente assinaria, noutras circunstâncias, lembrando todos os dias os seus defeitos de nascença, da falta de realismo dos seus pressupostos macroeconómicos à imposição de medidas essenciais que ora uma ora outra das partes não subscreve.

Ver José Sócrates regressar de um encontro europeu com uma vontade de negociar, que aparentemente não tinha à saída de Portugal, foi ter a confirmação de uma tese que não me é particularmente simpática, a de que, de tempos a tempos, o primeiro-ministro tem de ir a Bruxelas, ou a Bona, para receber um puxão de orelhas e fazer o que, à partida, sabia já que era necessário fazer. Da mesma forma que não me agrada a tese de que o melhor para nós, portugueses, seria tudo falhar para que o FMI pudesse vir pôr a (nossa) casa em ordem.

É verdade que este acordo tem pés de barro. Mas tem pés. É, apesar do que acima ficou dito, um acordo. E por muito que tudo jogue contra as suas condições de sucesso, continua a ser uma esperança de solução, que é a nossa solução, que tem coisas positivas, e que deve ser apoiada. É, aliás, justo, no lamentável contexto que enquadrou as negociações, destacar o papel que Eduardo Catroga e Teixeira dos Santos desempenharam em todo o processo. Fizeram um autêntico milagre, conciliando o inconciliável, ultrapassando arrogâncias e vaidades, e conseguindo, inclusivamente, integrar boas iniciativas, para agora e para o futuro.

É o caso da proposta de criação da comissão independente de fiscalização da execução orçamental. A transparência orçamental evitaria muitos dos atritos que hoje corroem o debate político e minam a confiança nas instituições. Resta saber em que moldes funcionaria tal comissão. E esperar que não se arraste num processo de escolha e nomeação semelhante ao que conduziu ao vergonhoso episódio da última passagem de testemunho do provedor de Justiça. Fica a pergunta: porque não atribuir essa missão ao Tribunal de Contas? Tem dado, ao longo dos anos e de forma crescente, provas claras de competência e de isenção.

IN "VISÃO"
 04/11/10

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