17/10/2010

MANUEL MARIA CARRILHO

MANUEL MARIA CARRILHO

O atraso

Fala-se muito do atraso português face à Europa e ao mundo mais desenvolvido, mas há um outro atraso que é talvez o que mais pesadamente marca hoje os impasses que vivemos: trata-se do atraso da política face à sociedade.
Atraso da classe política em geral, das suas ideias e dos seus métodos. Da classe política que vive fechada nas suas equívocas cumplicidades e nos seus jogos de interesses. Das suas ideias, que se tornaram nichos ideológicos residuais que sobrevivem assustadiços com todas as frestas por onde possa passar algum ar... Dos seus métodos, sobretudo orientados para fazer durar, mais do que para incentivar ou representar o que quer que seja.
Este é um dos traços que mais devem merecer a nossa atenção, se quisermos fazer um balanço sério das últimas décadas, ter um inventário honesto dos últimos anos e mudar o estado das coisas. Ele foi--se instalando a pouco e pouco desde os primeiros anos do regime democrático, quando muitos descobriram que era mais fácil fazer da política uma profissão do que assumi-la como uma missão.
As elites não tiveram coragem, ou inteligência, para resistir. Preferiram afastar-se, deixando os partidos nas mãos de grupos com poucos valores e quase sem causas, que assim foram dominando os aparelhos, cartelizando o Estado e virando costas à sociedade.
Prova disto foi a necessidade que houve (com Cavaco Silva, nos seus primeiros tempos, e sobretudo António Guterres com os Estados Gerais) de recorrer à sociedade civil para formar equipas de qualidade, com conhecimento e com capacidade de enfrentar os problemas do País. Infelizmente, em ambos os casos sem benefícios internos, uma vez que os partidos têm preferido coabitar transitoriamente com independentes mais ou menos dóceis do que acolher militantes efectivamente autónomos e livres.
Acontece que, enquanto a política se fez segundo um modelo que combinava a distribuição daquilo que não se tinha com a fuga (em geral "em frente"!) ao que incomodava, tudo parecia fácil. Mas agora, que as coisas mudaram, a incapacidade política revelou-se de um modo tão estrondoso como evidente.
Esta incapacidade é bem clara no impasse actual: por um lado, exibe-se um optimismo todo feito de deslumbramento tecnológico e de virtualidades mediáticas, que vive ao sabor dos movimentos quase infinitesimais das estatísticas mais irrelevantes. Mas ao mesmo tempo insiste-se, por outro lado, no fatalismo mais paralisante: "ninguém previu", "não há alternativas", "a culpa é da crise internacional", etc. Com o optimismo, procura ganhar-se em tempo o que se perde em acção, com o fatalismo, procura ganhar-se em impunidade o que se esconde de irresponsabilidade.
De resto, que classe política, que não fosse dominada pelo arcaísmo das suas ideias e pelo egoísmo dos seus interesses, poderia, há um ano, ter pensado - um só segundo que fosse! - que seria possível lidar com a mais grave crise que Portugal enfrentou desde 1974, com um governo minoritário?
Mais: que outra classe política poderia, de um modo tão inconsciente, ter completamente esquecido a lição das experiência minoritária de 1995/2001, e o "pântano" a que ela conduziu? (Compare-se, a propósito, com o que recentemente - em situação análoga - aconteceu em Inglaterra).
E como é possível que se ignorem todas as análises e todos os dados da sociologia e da ciência política, que têm mostrado como hoje é difícil governar, não em minoria - hipótese que o simples bom senso deveria levar a excluir! -, mas mesmo em maioria, devido a fenómenos tão diversos como a crescente fragmentação eleitoral, o forte individualismo dos cidadãos, a disjunção das temporalidades, a precariedade das identidades ideológicas, multiplicação das legiti- midades políticas, a erosão dos mandatos, os efeitos do curto-termismo, etc.
A palavra responsabilidade anda muito na boca dos polí- ticos portugueses - mas há, infelizmente, razões para desconfiar que se trata so-bretudo de má consciência. Porque a responsabilidade é uma exigência que liga não só as promessas e o seu cumprimento, mas também a acção e as suas consequências - e ela é tanto mais incontornável quanto maior for a previsibilidade destas.
Os dias difíceis que vivemos são a mais do que natural consequência das imprudentes opções que se têm feito. E ela aponta para a importância e para a urgência de se trocar a cultura política de per- manente afrontamento, que de-sespera os cidadãos e esgota o País, por uma cultura política de aber-tura, de pluralismo e de negociação, que clarifique as opções dos cidadãos e dê serenidade ao País. Não haja ilusões: só assim aparecerá, no horizonte, algum sinal de esperança. 

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
14/10/10

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