27/10/2010

ALBERTO GONÇALVES

ALBERTO GONÇALVES

Adeus, Mocidade Portuguesa

Em época de proclamado aperto nas contas públicas, a reacção de quem de direito é a esperada: espatifar as contas públicas tanto quanto possível. Pela parte que lhe toca, a administração local subiu o endividamento em 23% (dados de 2009), façanha que o dr. Fernando Ruas garante não só não ser "preocupante" como totalmente legal e "um acto de gestão igual a outro qualquer". Por acaso, salvo raríssimas excepções, não há memória de "actos de gestão" autárquicos, legais ou ilegais, que conduzam à diminuição do défice. Mas esse peculiar estilo de restrição orçamental não é exclusivo dos chefes paroquiais.
No Estado em geral, a despesa subiu 2% nos primeiros nove meses do ano, se comparada a idêntico período do ano passado. O ministro das Finanças explicou que isso é bom, já que o crescimento homólogo entre Janeiro e Setembro foi menor do que o crescimento homólogo registado entre Janeiro e Julho. Em português: o descontrolo continua, mas é um peda- cinho menor do que chegou a ser.
Como se consegue? Como consegue manter-se, com relativo crédito, um discurso de austeridade e uma prática exactamente oposta? Não é fácil. Ou se calhar até é. Primeiro, precisa-se de talento, o peculiar tipo de talento que ergue os governantes indígenas aos lugares que merecidamente ocupam. Depois basta uma parcela significativa do eleitorado pronta a acreditar nas mais extravagantes patranhas.
Veja-se, a propósito do Orçamento, o exemplo dos organismos estatais. A proposta do PS prevê a extinção de 50 entidades do género e os devotos aplaudem o empenho do Governo na causa da poupança. Não importa que os 50 referidos abrigos das clientelas constituam uma fracção microscópica das incontáveis fundações, institutos, serviços, agências, empresas municipais e tortumelos similares. Nem importa que a supressão de umas siglas se limite a transferir as clientelas de um gabinete para o gabinete ao lado. Sobretudo não importa que alguns dos organismos a encerrar em 2011 nem sequer existam ou, de acordo com decretos anteriores, não devessem existir.
A história saiu aqui no DN, que detectou, por alto, nove divertidos casos assim. Um deles é o dos Serviços Sociais do Ministério da Justiça, teoricamente abolidos em 2008. Outro é o do Hospital Condes de Castro Guimarães, fechado desde Fevereiro. Outro ainda é o do Observatório das Políticas Locais da Educação, que supostamente deixou de observar durante o corrente ano. O meu preferido é a Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (?), infelizmente falecida em Maio passado.
Isto apenas dá razão aos que criticam o Governo por ter sido pouco ambicioso nos cortes. Se o objectivo era acabar com instituições imaginárias ou extintas, não custava nada anunciar o fim de cinco mil em vez de 50, incluindo a Mocidade Portuguesa, a Liga de Amigos da URSS e o Centro de Contemplação Aplicada das Lontras do Baixo Vouga (CCALBV). O País ficaria rendido a tamanho exercício de contenção, e o PS saltaria nas sondagens dos 35% para os 45%. No mínimo.

Terça-feira, 19 de Outubro

A crise dentro da crise
É apreciável a resistência dos que, numa luta sem tréguas contra a realidade, continuam a discutir a nossa crise como se a nossa crise resultasse do capitalismo "selvagem", da "desregulação" (sic) dos mercados, dos especuladores, do "egoísmo" da sra. Merkel, da União Europeia, dos EUA, do FMI, da banca, das agências de rating e, se não estou em erro, do Grupo de Cantares de Manhouce.
Nas cabecinhas voltadas à esquerda, aliás maioritárias, as monstruosas entidades acima conspiram para arrasar Portugal e o seu encantador "Estado social". Presumo que será escusado explicar-lhes que foi o "Estado social", ou o arremedo inevitavelmente corrupto que por cá se construiu, o responsável pelo buraco em que nos metemos. Em Julho de 2009, um bando de economistas dessa curiosa escola produziu um abaixo-assinado a subscrever a "aposta" do Governo no "investimento" público. E isso numa altura em que toda a gente que queria perceber já tinha percebido que é na arbitrariedade com que uns poucos consomem o dinheiro de todos que reside o maior drama nacional. A crise é a crise do "Estado social".
Agora, ainda que numa escala pequenina e burlesca, temos também a crise dos seus defensores. Embora se mantenha nas causas, a unanimidade que existia quanto ao remédio sumiu. De um lado, estão os "lealistas", no sentido de que são leais ao eng. Sócrates e às suas cambalhotas. Batem-se hoje pela contenção da despesa, virtual que seja, com o empenho com que há meses se batiam pelo seu aumento. E juram a urgência em controlar o défice com a convicção usada em Fevereiro último para legitimar o défice enquanto - não se riam, por favor - instrumento de ajuda à economia.
Do lado oposto, estão os comunistas, facção PCP ou facção BE. Os comunistas assumiram a ruptura definitiva com o eng. Sócrates a pretexto dos sucessivos planos de austeridade. Para eles, o défice ou é irrelevante ou é relevante na medida em que permita depenar os "ricos" e insultar banqueiros e offshores. O fundamental, repetem, são os direitos dos trabalhadores, ainda que, na prática, a situação da maioria dos trabalhadores se agrave em função dos privilégios concedidos a uns tantos.
Em suma, uns destruíram a economia através do oportunismo, outros, caso mandassem, destruiriam a economia por convicção. É pena assistir à cisão dos que entre nós lutam pelo "Estado social". Vale que a fúria com que enfrentam a realidade é sempre una e indivisível, e a derrota é sempre certa. O que não deveria valer é sermos sempre nós a patrocinar os despojos. 

Quinta-feira, 21 de Outubro

Interesses nacionais
O alegado inventor de Pedro Passos Coelho parece finalmente em ruptura com a sua invenção. Para o dr. Ângelo Correia, negociar o Orçamento com o PS é inútil dado que o PS que realmente manda, leia-se o eng. Sócrates e aquele senhor Silva Pereira, nunca negociará nada. O pressuposto faz algum sentido. Já as conclusões que o dr. Ângelo Correia retira do pressuposto não fazem sentido nenhum.
Se bem percebo, o raciocínio é o seguinte. O dr. Ângelo Correia acha que o Orçamento é uma calamidade e, ainda por cima, uma calamidade irrecuperável. Logo, o dr. Ângelo Correia acha que o Orçamento tem de ser aprovado com a abstenção do PSD e sem condições, incluindo as condições meigas, quase irrisórias, que o dr. Passos Coelho decidiu colocar. De facto, não percebo. Quando um restaurante é péssimo, as pessoas mudam de restaurante. Não tentam corrigir o cozinheiro, aliás imune a ensinamentos, e, sobretudo, não arriscam repetir o prato. O país já repetiu o prato indigesto demasiadas vezes. O dr. Ângelo Correia quer que o País teime na indigestão.
O absurdo disto não detém o dr. Ângelo Correia. De acordo com o também presidente da Câmara de Comércio Luso-Árabe, a viabilização do Orçamento recomenda-se por dois motivos. O primeiro é que a sua rejeição "criaria uma crise financeira aguda" (por contraponto à crise em curso ou à crise que advirá da respectiva aprovação?). O segundo, e brilhante, argumento é o de que "o PSD não deve fazer aquilo que o PS quer". Por outras palavras, ao abster-se, o PSD "irá dar aos portugueses a possibilidade de o PS ser confrontado consigo mesmo" e, prossegue o também cônsul honorário da Jordânia, "o PSD sabe que o PS não é capaz de governar nesta situação".
Bem, por esta altura julgo que já é lendária a incapacidade de o PS governar em qualquer situação. O mistério é o dr. Ângelo Correia ambicionar que governe. E um mistério ainda maior é o dr. Ângelo Correia não estar sozinho na ambição.
Anda por aí uma extraordinária quantidade de gente a presumir que o eng. Sócrates aspira a sair do poder e a presumir que o castigamos obrigando-o a continuar. A ideia é a de que o Orçamento será a Via Crúcis do primeiro-ministro e o seu fim político. Belíssimas intenções, não fossem realizadas a expensas de uma economia agonizante, que dificilmente suportará a brutalidade da experiência.
Assim, trata-se apenas de prolongar a tortura colectiva para efeitos estratégicos. Não importa se a estratégia serve os objectivos do dr. Ângelo Correia, do PSD em geral, do prof. Cavaco ou, se calhar, do próprio PS. Importa que não serve os objectivos de mais ninguém, embora venha enfeitada com os laçarotes da "responsabilidade" e do "interesse nacional". Interessante.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
24/10/10

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