21/09/2010

CLARA FERREIRA ALVES






OK, daqui fala o Kafka

Palavra contra palavra? Dá mentira e erro. Dá injustiça. Estamos sós, com a nossa palavra.

Ouçam esta história sobre palavras. Ia eu sossegada por uma rua de Lisboa no meu velho Twingo saído da oficina, lavado e acabado de passar na IPO, quando parei numa esquina para olhar à direita. Sou do género cuidadoso porque odeio carros e desconfio de gente que anda depressa. A rua forma com outra um ângulo que não é reto e como é cego a partir de alguns metros, só dá para ver que não vem ninguém nesse último lance.

Paro, avanço a dez à hora para a entrada de um parque de estacionamento, volto a parar para ver se vem alguém a sair do parque. Parada, ouço um buzina frenética e vejo um carro que desce a rua pela minha direita em alta velocidade. Não consegue travar a tempo. Abalroa-me. Apanho um susto e fico com o pescoço à banda. Do outro carro sai um senhor muito alterado, suado, aos gritos: porque é que eu não o vi, ele vinha da direita. Vinha sim, a uns 60 e tal à hora numa ruazinha estreita e íngreme. Um grupo de pessoas aparece e diz-me que tenho toda a razão e que o tipo vinha lançado, perigoso, e que não saísse dali sem chamar a Polícia.

À menção da Polícia, o condutor diz que nada, não é preciso, de facto ele vinha lançado porque estava com pressa para uma reunião com alunos, ia considerar-se culpado, declaração amigável, ele pagava tudo. Como não sou de sinistros, acreditei na palavra do homem.

Uma testemunha disse-me logo que ele era um aldrabão ao tentar culpar-me e que fizesse o teste do balão. Deu-me um telemóvel para chamar a Brigada e o número. Desorientada, reparei que o meu carro estava destruído na lateral de trás. Doía-me o pescoço. Do parque formava-se uma fila de carros que apitavam furiosamente. Bloqueados. Temos de ir trabalhar, resolvam isso. Acreditei na palavra do outro, isto não é nada, o meu seguro paga, fica aqui com os contactos todos, tenho de ir embora já.

Produziu-se uma declaração amigável que ele preencheu cheia de emendas, esboçando um desenho errado do acidente. Uma das testemunhas avisou: o desenho dele dá a entender que ele vinha da direita mas foi na parte de trás do seu carro que ele bateu. Não conseguiu travar. O homem da batida suava copiosamente. Palavra de honra.

Telefonei para a Brigada: Olhe, resolvam isso a bem porque vamos demorar umas três horas a chegar ao sítio, muito atrasados, assinem a declaração amigável. Um outro carro da Polícia passou na rua, olhou com fastio a cena, e sentenciou: chamem a Brigada. Não é connosco. A fila de carros buzina, há insultos, deixo ir embora o outro. Acredito na palavra dele. Encontrávamo-nos no dia seguinte para acertar detalhes. Fui ao meu mediador de seguros, que me aconselhou a preencher outra folha porque aquela estava cheia de gatafunhos. Perguntou-me pelo teste do balão. Não tinha. Tinha cinco telefones de cinco testemunhas. E a palavra do outro.

No dia seguinte, faltou ao encontro e mandou uns sms a dizer que estava retido. Peço desculpa sra. dra. Etc. Comecei a desconfiar. Apareceu no dia seguinte e assinou. O carro foi para uma peritagem numa oficina da marca que estabeleceu um preço altíssimo de reparação. A seguradora do outro, OK daqui fala a Marta, enviou carta a dizer que não pagavam a reparação, o carro estava perdido, davam-me €750 e eu entregava o salvado. Ou não, e descontavam-me €125 se eu quisesse o salvado.

Eu gosto do meu Twingo e quero salvá-lo. Não tive culpas e estou inocente. O motor está novo e tem apenas 70 mil km. OK, vou pedir um orçamento de chapa razoável. Obtive um de €750. A OK disse-me que ia haver outra peritagem de responsabilidade mas, em princípio, nada a objetar, podíamos "chegar ali", aos €750, e eu ficava com o meu salvado que não lhes interessava. Telefonou um perito da minha companhia ao qual contei toda a história, sobretudo a velocidade perigosa do outro carro.

Pelo sim pelo não, como a OK me tinha dito para enviar um mail com o orçamento da segunda reparação, decidi contar ao meu advogado que me avisou: seguradoras não são OK, nada OK, redigiria carta defendendo os meus legítimos interesses.

O meu carro está imobilizado desde julho. Em setembro, chegou um mail lacónico da OK a dizer que não pagavam, o outro cavalheiro vinha pela direita, eu era imputável. A minha seguradora enviou um sms a dizer que me iam enviar uma carta. Com "a nossa posição". A minha companhia é do mesmo grupo da outra. Not OK.

E a minha posição? Ninguém quer saber. Às testemunhas foi pedido um "depoimento por escrito". Eu nunca fui ouvida nem contactada pelos peritos OK, a minha palavra vale zero, e o homem que deu a sua palavra de que iria dizer que ia depressa de mais deve ter dado o dito pelo não dito. É o que dá acreditar na palavra alheia. OK? OK, daqui fala o Kafka.

Palavra contra palavra? Dá mentira e erro. Dá injustiça. Estamos sós, com a nossa palavra. Muito sós.

Texto publicado na revista Única do "EXPRESSO" de 11 de Setembro de 2010

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